terça-feira, maio 06, 2008

Don Jayme Caetano Braun

A poesia de Jayme Caetano Braun


Gramática, poesia... e uma panela de ferro
Todos os trabalhos humanos, desde construir um muro para fechar um túmulo, até escrever um poema para o deleite da alma, são compostos de duas partes: a braçal e a intelectual. Uma, até pode ser feita pelo escravo; a outra deve ser executada, necessariamente, pelo senhor. A diferença que os separa é o infinito, quando a alma humana, com a sua enorme capacidade de criar, se equipara ao Criador do Universo.
Para existir é preciso energia. A gente não vive de graça: paga-se segundo por segundo vivido! Não há como regatear. A moeda, porém, não é o dinheiro, mas o trabalho. Este é o encanto da vida: não poder ser comprada por dinheiro nenhum. Senão, os ricos seriam imortais.
"O trabalho distingue a humanidade do animal. Desperta as messes nos pampas, extrai metal luzente dos mais negros antros, converte a argila em lar, a pedreira em estátua, o trapo em vela, a cor em quadro, a chispa em labareda, a palavra em livro, o raio em luz, a catarata em força, a hélice em asa. Seu esforço secular criou o poder do homem sobre as forças naturais, dominando-as antes, para utilizá-las depois. É obra sua a alavanca, a cunha, o machado, a roda, a serra, o motor e a turbina. Nada existe no mundo que não conserve o vestígio de suas virtudes vencedoras do tempo".
Todo o capital da humanidade representa trabalho acumulado. Criaram-no as gerações que já trabalharam, e são seus legítimos donos as gerações que hão de trabalhar. Os que usurpam algo desse capital comum, para convertê-lo em instrumento de ócio, são inimigos da sociedade.
O trabalho é um dever social. Os que vivem sem trabalhar são parasitas mórbidos que usurpam aos outros homens uma parte do seu labor comum. A mais justa fórmula da moral social ordena imperativamente: "quem não trabalha, não come!" Quem nada leva para a colmeia, não tem o direito de provar o mel". (José Ingenieros – "As forças morais").
O trabalho intelectual não prescinde do muscular, como a alma não dispensa um corpo físico para se manifestar. O intelecto não se alimenta de inspirações, de ventanias. O neurônio precisa da energia bioquímica real, palpável e mensurável, na dimensão científica que acaba com romantismos e superstições. Cada novo progresso científico pulveriza legiões de crendices.
A gramática é a parte menos nobre da Literatura. Significa trabalho escravo, como carregar pedras ou abrir valos, onde a máquina e o computador podem fazer muito melhor do que o homem. Mais importante de "como se diz" é "o que se diz". Mas, nem por isso deixa de ser valiosa. Sem ela não haveria formas de expressão e seríamos como as pequeninas ilhas perdidas na corrente do oceano que se refere Hemingway, isolados pela impossibilidade de comunicação. As idéias ficariam desfiguradas, como acontece com o autismo, com a pintura moderna, a música dodecafônica, disformes como espectros que escondem, no seu sincretismo, a loucura ou a absoluta falta de talento.
Há de se valorizar mais a idéia, que é alma, mesmo cientes de que ela precisa da palavra para existir como literatura, do que a embalagem, que é a gramática. A idéia é chama, ou centelha divina, que anima qualquer esforço, elevando o homem a Deus, fazendo a diferença enorme que há entre amontoar pedras, como fazem os castores, e pintar a cúpula da Capela Sixtina, como fez Miguel Ângelo. A arte verdadeira – alma e forma, idéia e gramática – não precisa de simbolismos nem de interpretações. Ela se impõe por si mesma, pela sua beleza divina que entra alma a dentro, fulgurante como um raio, fazendo o homem cair de joelhos diante do magnífico. A beleza é absoluta.
"Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina!"
"Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina!" – diz um velho e sábio provérbio italiano intuindo a importância da aptidão natural e da experiência no sucesso de qualquer empreendimento.
O diamante passa despercebido aos olhos despreparados dos leigos: confunde-se com o cascalho. Mas, não para o entendido! Há uma coisa que o Braga, experiente editor do extinto jornal "Folha de Hoje", jamais faria: recusar um trabalho por conter erros de ortografia, porque o autor não soube usar, corretamente, a vírgula ou o pronome oblíquo. Só com um pequeno detalhe: trata-se da notícia da cura radical, completa, imediata e barata do câncer e da AIDS em qualquer forma ou estágio. A maior notícia do século! É o diamante disfarçado em cascalho.
Nos momentos cruciais entre vida e morte, como acontece nas grandes complicações cirúrgicas, o Dr. Roberto de Oliveira Flores lembra o que dizia o seu velho mestre ao afirmar que a teoria vale pouco, vale mais a experiência: "Quando a coisa fica mesmo difícil, não chame, nunca, o doutor, chame o médico!" Ele sabia que a teoria, na hora da verdade não funciona, porque não sabe separar o belo do útil. "A sabedoria" – que não tem nada a ver com beleza – "não vale a pena se não for possível servir-se dela para inventar uma nova maneira de preparar o feijão". (Garcia Márquez – "Cem anos de solidão").
Catulo da Paixão Cearense, o poeta porque nasceu poeta e não porque decorou a gramática, assim respondia às críticas que lhe faziam os invejosos criticastros que costumam proliferar atrás das glórias alheias: "Com Gramática, ou sem Gramática, eu sou o maior poeta do Brasil!"
E era mesmo! Porque agora não é mais. Assim como ninguém "laça a mula sem cabeça, maneia o diabo rengo, nem rouba um beijo da prenda minha", ninguém abafa um talento! Agora surgiu um outro, que também foi chamado de analfabeto e, mesmo assim, é um dos maiores de todos. Seu nome? – Jayme Caetano Braun!
"......................................
Meia dúzia de impostores,
que se arvoraram folcloristas
e andam – mesmo que angolistas,
ciscando nos corredores,
com siglas de professores
que adotaram por decreto,
me chamam de analfabeto,
– aceito a definição,
mas tenho o usucapião
que me concede o dialeto!
........................................."
("Identidade" de Jayme Caetano Braun)
Quem foi Jayme Caetano Braun
As grandes figuras não têm idade, porque o talento nunca envelhece. Por isso, não interessa quando o poeta nasceu, nem quantos anos ele tem. Caetano Braun é imortal: vive nesta terra e nas páginas dos seus livros, nas reuniões de tradicionalistas, nos galpões enfumaçados, nas rodas de mate deste mundão sem fronteiras.
Para dizer quem foi Jayme Caetano Braun, passo a palavra ao grande Rui Ramos – advogado e tribuno, primeiro; depois... legenda, no dizer do próprio Braun – que o conhecia tão bem:
"Cruza de um mestre-escola de origem alemã, o Prof. João Aloyzio Braum, e de uma formosa cabocla, crespa e jambo, dos Sete Povos das Missões, Dona Euclides Ramos Caetano, o poeta surgiu na região de Sepé Tiaraju e sugou no leite da infância e no churrasco da juventude, toda essa força telúrica do ancestralismo, com que pode, agora, transmudar em beleza e som e rima os motivos explorados e inexplorados da vida, da luta e do sofrimento do gaúcho.
(...)
Jayme Caetano Braun não é apenas um fazedor de versos. Tem personalidade definida. Encarna, com vigor e determinação a defesa das nossas tradições, seriamente ameaçadas por um processo degenerativo."
Para confirmar o que disse o grande Ruy Ramos, ouçamos o próprio Caetano:
"E assim como tu, Negrinho,
Que um dia foste espancado
E por fim martirizado
Num formigueiro do pago,
O meu peito de índio vago
Também sofreu igual sorte.
E hoje vagueia sem norte,
Sem fugir, por mais que ande,
Deste formigueiro grande,
Onde costumes malditos
Tentam matar aos pouquitos
As tradições do Rio Grande!"
Como a maioria dos verdadeiros artistas, de qualquer ramo, Caetano sempre teve horror às aglomerações despersonalizantes dos rebanhos. Não existe mutirão na arte. É a atividade mais solitária – a solidão dos píncaros – que existe, como o nascer e o morrer.
O seu maior biógrafo, o poeta Balbino Marques da Rocha, compôs um belíssimo poema em homenagem ao Eduardo, filho do Caetano Braun. Existe uma grande admiração entre Balbino e Caetano.
O texto a seguir foi extraído do Prefácio do Livro "Potreiro de Guachos", de Jayme Caetano Braun, publicado em 1969.
"Jayme Caetano Braun é, hoje, um nome repetido em todos os quadrantes do Rio Grande...
Seus livros nada mais são do que instantâneos de algumas notas que o autor conservou. O mais perdeu-se e se perderá nas noites de galpão, nas reuniões sociais e nos encontros de payadores onde Jayme, de improviso, emocionado e de olhar penetrante, solta ao sabor de uma milonga o rosário de ouro das suas mais profundas composições. Ele é um repentista soberbo encarnando, nos momentos de exaltação, o panorama inteiro do Rio Grande. Na pasmosa transfiguração do espírito revive nele, nestes momentos, o índio inculto, nas oferendas tribais, no soturno socalcar de couros estirados sobre troncos ocos, linguagem grave de evocações lendárias do selvagem galpão. Revive o homem de chiripá e botas de garrão de touro, na inimitável expressão dos dias da conquista, onde se viviam momentos de couro cru e a lei era a faca, nas distâncias infinitas do pampa, quando os monarcas da amplidão transpunham distâncias ao ritmo de quatro-patas e, ao esvoaçar de crinas de baguais recém-domados. É o peão de estância, no seu linguajar grosseiro e pitoresco, a reviver pealos porteira afora e a decompor expressões desconhecidas da gramática, porque se geraram nos atropelos de campereadas, que não se repetem, sovando rédeas e pelegos.
Na misteriosa transubstanciação das rimas, abstrai o seu tipo físico e veste a expressão de domadores e vaqueanos, ao trote de garanhões poderosos, destilando ao compasso de patas a rima bárbara de horizontes chucros. Os que ouvem estranham-se de um Rio Grande com pasto, percebendo a bulha de tiradores e o tinido ancestral das esporas de ferro, riscando ilhargas de baguais. Afundam pelos descampados bravios do Continente de São Pedro, em caravoltas da História, remontando às jornadas da Colônia do Sacramento, onde se forjaram os gaúchos de três pátrias. Penetram os momentos das arriadas nas vaquerias do mar, no comércio bruto de couro e sebo, ao zunir de boleadeiras e laços e no rechinar de arreios, quando o homem se impunha às leis bárbaras de uma natureza crua, entre tropéis e manadas...
Depois, na transposição maravilhosa da inteligência, ele nos repõe nos nossos dias, frente ao fogo de um galpão evocativo, embebidos da visionária e impressionante retrospecção do passado, para nos sentirmos mais rio-grandenses e compreendermos que, somente a um homem a cavalo, poderia ser atribuída a tarefa de vigiar como sentinela este imenso Brasil.
Jayme nasceu em São Luiz Gonzaga mas, naquele momento, tremeram os alicerces dos quatro pontos cardeais do Rio Grande, porque nascia o grande e inimitável payador desta terra, que terá o calendário mudado para antes e depois de Jayme Braun.
1969, Porto Alegre
Balbino Marques da Rocha."
***
Jayme Caetano Braun é um poeta gaúcho consagrado em todo o Brasil, lido também no Uruguai, no Chile e na Argentina. Repentista como ninguém, escreveu oito livros de poesia carregada de telurismo, entre eles "Potreiro de guachos", "Brasil Grande do Sul", "De fogão em fogão", "Pátria – Fogões – Legendas", "Bota de Garrão", "Galpão de estância" e o melhor de todos: "Paisagens perdidas".
Caetano Braun se fez de viagem.
"E um dia, quando souberes
Que este gaúcho morreu,
Nalgum livro serás eu
E nesse novo viver
Eu somente quero ser
A mais apagada imagem
Deste Rio Grande selvagem
Que até de morto hei de querer!"
Jayme Caetano Braun se fez de viagem a Pouso Alto. Não o Pouso Alto da nossa terra, mas o Pouso Alto de outra dimensão: alto como o céu da glória. Os seus versos ainda ressoam nos galpões de todo o Rio Grande Sul, do Paraná, do Mato Grosso, de São Paulo, do Brasil inteiro, de sul a norte, de leste a oeste, em todos os rincões onde se cultua as tradições de dignidade humana e o respeito por um passado de glórias, causando nós em gargantas. Nas escolas do interior, gauchinhas e gauchinhos declamam os versos do poeta, fazendo muito gaúcho bruto esconder lágrimas furtivas, envergonhado por carregar tanta sensibilidade na alma, tocado pela emoção, talvez lembrando o seu próprio pai ao ouvir o poeta cantando, com voz rouca, saudades do seu "velho querido", o João Aloysio: "E se não fui nem a sombra / Do que foste, velho Santo, / Uma coisa te garanto / Sempre me orgulhei de ti!"
Foi a genialidade e a prática que consagraram Caetano Braun. E, acima de tudo, a sua grande sensibilidade para o heróico e o animismo que impregnam a sua obra. É este mesmo animismo, que ele "bebeu no leite da infância e no churrasco da juventude" como disse Ruy Ramos, presente em tudo o que canta e escreve. Trata animais, coisas, objetos e até os fenômenos meteorológicos como pessoas, exatamente como faz o índio de qualquer nacionalidade, familiarizado com a terra – irmã e não inimiga. Caetano tuteia botas, pelegos, ponchos, facas, laços, cuias, erva-mate, galos de rinha, cavalos; fala – sem dialogar porque dialogar seria pedantismo – com o vento, com taperas, com a chuva e com uma infinidade de objetos de uso campeiro, na maior intimidade. Esta é a grande herança materna do Caetano Braun: o animismo que o torna tão íntimo do cosmo, tão guarani! Gente assim – índios e Caetanos Brauns – estendem seu humanismo sobre todas as coisas e seres, como São Francisco de Assis e como Buda. Ninguém é humano se discrimina alvos dos seus afetos, maniqueísticamente como fazem as doutrinas absolutistas, os fanáticos de quaisquer idéias – católicos, maometanos, fundametalistas, comunistas, nazistas. O amor é universal: não discrimina cor, sexo, raça, bandeira, religião, nem natureza.
Tanto isto é verdade que apesar de tanto amar o seu berço – "de todos os sentimentos humanos, nenhum é mais natural do que o amor pela aldeia, pelo vale ou pelo bairro em que vivemos os primeiros anos" (J. Ingenieros) – o poeta demonstra carinho por todos os povos que sintonizam com o sua alma, englobando-os no seu "Brasil Grande do Sul" num grande abraço. Vem confirmar as palavras de Tolstói: "Quanto mais regional o escritor, quanto mais fale da sua aldeia, mais universal ele se tornará".
Assim, "al compás de la vigüela", carradas de sentimentos são descarregados da carreta dos seus livros, carregada de saudade, pelos lábios do "payador". Não há quem não o entenda, porque ele fala a linguagem do coração.
Figueira pampeana
Caetano Braun é uma figueira pampeana, a árvore que melhor simboliza, junto com a corticeira, o Rio Grande do Sul: forte, imponente, majestosa, imune a vendavais e tormentas. E, principalmente, bela, xucra e solitária, que não se agrupa em comportados reflorestamentos despersonalizantes como os clones de Pinus eliotis. Seus galhos longos são braços que abrigam ninhos de passarinhos: mas são passarinhos cantores...
Jayme Caetano Braun é uma majestosa figueira: raízes bem fincadas na terra, como o gaúcho orgulhoso dos seus pagos natais, copadas voltados para ao alto, querendo agarrar o céu. É a perfeita representação do verdadeiro tradicionalista: idealismo sem preciosismos nem limites, mas com pés no chão... ou bem firmes no estribo – em "estriberos de dedo".
É o poeta do "Galo de Rinha" – "E se alguém dobrar-me a espinha, / há de ser depois de morto!"
do "Tio Anastácio" – "Entre a Ponte e o Lajeado / Na venda do Bonifácio / Conheci tio Anastácio ..."
da "Bota de garrão" – "... / rude – bárbaro e singelo, / o meu Rio Grande pagão / é uma Bota de Garrão / no Mapa Verde Amarelo!"
da "Milonga de Três Bandeiras", – "Vieja milonga pampeana / hija de llanto y vientos,"
do "Payador, pampa e guitarra" – "Payador – Pampa e Guitarra / Guitarra – Payador – Pampa / três legendas de uma estampa / onde a retina se amarra;"
do "Bochincho" – "Qual ia ser o meu fim, / me dei conta – de repente, / não vou ficar pra semente, / mas gosto de andar no mundo, / me esperavam na do fundo, / saí na porta da frente..."
do "Galpão de estância" – "Sala grande, chão batido, / Onde passei minha infância..."
do "Morreu o Jacinto Louco" – "Mas a vida foi mais louca, / do que o louco que morreu, / porque só tinha de seu, / uma gaitinha de boca;"
do "Vento Sul" – "De poncho azul, / pingo de gelo, / é o vento sul, / cruzando em pêlo!"
do "Gaitaço" – "Já pedi a Deus e ao demônio / que me livrem de balaço, / quero morrer de um gaitaço / num baile de Santo Antônio!"
das "Paisagens perdidas" da sua infância – "Paisagens de sombra e luz, / como é que pude perdê-las?"
***
Será que o Caetano morreu, mesmo? Parece-me ainda ouvir, vindos "do fundo das grotas de um funeral guarani" os seus inconfundíveis versos gaguejantes:
"O tempo fica pra trás,
mas eu confesso que sinto,
pela força do instinto
na saudade me enfumaço:
– perde o Rio Grande um pedaço
já não tem mais o CAETANO!"
O grande "payador"
Ninguém improvisa melhor do que Caetano Braun: rima e métrica andam de mãos dadas com os sentimentos. Nos seus últimos poemas manifesta uma nítida crença na imortalidade. É um Sócrates guarani que fala com voz rouca, exprimindo sabedoria em forma de poesia: "A esperança do inverno é voltar a primavera".
Quanto sentimento há nos seus versos! Têm a autoridade da beleza quando casada com a verdade. É por isso que ele não ensina: ele faz. E bem feito! Bem feito porque é expontâneo e natural. Ninguém obrigou-o a fazer poesia. O trabalho obrigado é trabalho de escravo. Não se pode amar o que se impõe. "O trabalho só é belo e tem valor" – diz Ingenieros – "quando representa uma aplicação natural da vocação e da capacidade". O trabalho só tem valor quando a espiga for colheita do próprio semeador.
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Na orelha do seu livro "De fogão em fogão", editado em 1958, há um texto que define a poesia de Caetano Braun: "Jayme Caetano Braun extravasa, em seus versos, a alma simples do gaúcho. Num estilo oposto ao acadêmico propriamente dito, sintetiza, o autor, toda a amálgama da vivência do pago, distribuindo, de fogão em fogão, dádivas maravilhosas expressas na simplicidade das rimas e na entonação vibrante dos versos". Completa o ensaísta e crítico Moacir Santana: "A obra conserva, em tudo, a originalidade do autor, homem estudioso e evoluído, que não quis se divorciar dos erros e dos vícios da linguagem do campesino, numa atitude respeitável de amor à verdade dos motivos cultuados".
Panela de carreteiro
Há tempos, Caetano Braun ganhou uma panela de ferro do seu amigo inseparável, o Noel Guarani. Não se sabe porque motivos – diz, ele, que "o Pedro Ortaça é o culpado" – brigaram, e o Guarani quis a panela de volta.
Não concordando, assim alegou Caetano:
"Panela de carreteiro,
dos tempos da monarquia
em constante romaria,
no velho pago campeiro,
regalo de um missioneiro
que me ofertou – de presente,
mas agora – indiferente,
a uma amizade sadia,
vive a sonhar – noite e dia,
chorando a panela ausente!
Maestro dos veteranos
da nossa canção bravia!
uma panela vazia,
não vale teus desenganos!
deixa isso pra os profanos
que a nossa história revela.
Guarani – a vida é tão bela,
em nossa terra baguala,
pra que gastar tanta fala
por causa de uma panela?
Larga de mão – eu te peço,
da idéia de entrar em juízo,
termina dando prejuízo,
só com as custas do processo,
o tempo aponta o progresso,
já sem relincho nem berro;
podes errar – como eu erro,
continuando desunidos
e nós dois sermos cozidos,
nessa panela de ferro!
Os três pés dessa marmita,
queimada – de casca escura,
são – na verdade – a estrutura
da nossa terra jesuíta,
por isso bugre – acredita,
na fala deste mestiço;
– canta – e não pensa mais nisso,
deixa que durma o passado,
o Pedro Ortaça é o culpado
de todo esse rebuliço!
Fica a panela comigo,
pois dela tenho usufruto,
cada segundo e minuto,
lembranças do tempo antigo
e – se não falo contigo,
por causa de uma querela,
caso eu estique a canela,
já está gravado o decreto:
– quando tiveres um neto,
manda buscar a panela!!"
("Panela de Carreteiro")
A rima e a métrica são impecáveis, dignas de um Camões. Mas, a sua maior riqueza, não há dúvida, a sua maior riqueza é o sentimento do bugre, orgulhoso da sua origem, que tanto valoriza a lealdade, a valentia, a amizade, a tradição e o amor à terra em que nasceu. E, acima de tudo, saudoso do passado, inconformado com o "progresso" destrutivo da nossa civilização de consumo: "eu tenho gana – que esse maula, / sem respeito, / que fez lavoura / da invernada onde eu vivia, / tente arrancar – a grama verde de poesia, / deste Rio Grande / que carrego no meu peito!"
O primeiro poema do livro "Paisagens Perdidas" contém, no final, os versos mais lindos de toda a poesia de Caetano Braun. Em quatro versos perfeitos – sentido vestindo a rima e a métrica com perfeição, cristalizando a beleza como a água em cristal de neve – expressou sentimentos que emocionam qualquer um:
"Paisagens de sombra e luz,
como é que pude perdê-las?
Ficaram as "cinco estrelas"
fazendo o "Sinal da Cruz"!"
Pura nostalgia de um homem passando os sessenta... É quando uma pessoa se dá conta da velocidade com que o tempo passa. "Como é que pude perdê-las?" No céu, bordado de estrelas, ficou o Cruzeiro do Sul, fazendo o "Sinal da Cruz" que termina as orações, como se fosse um "Amém".
Numa reportagem feita pelo Nico Fagundes em 1999, Caetano fala que aquilo que não é escrito fica perdido. Comentando com o repórter que em sua casa ele fazia poesia com naturalidade, como comia, ao ser perguntado se ficava registrado alguma coisa, o poeta responde que não. "Se perde" – disse Caetano. "Se perde" – repetiu depois. Se perde como ele perdeu as paisagens de sombra e luz da sua infância. "Os pensamentos que não são transformados em expressões palpáveis e concretas, são os produtos mais efêmeros da existência humana" afirma Richard Leakey.
Em todos os seus livros não se encontra nem uma página sem sinais de lágrimas de saudade dos velhos tempos de moço.
"E os olhos do carreteiro
Vão se orvalhando ‘cuê pucha’,
Pois na estampa pequerrucha
Daquele abrigo sem porta,
Entrevê a grandeza morta
Da velha estirpe gaúcha
Numa agonia que corta!
Deixa correr, carreteiro,
As lágrimas da saudade.
Já pouco resta, é verdade,
Dos lindos tempos de outrora.
O passado foi se embora
E tudo o que conheceste,
Já são pousos como este
Onde ninguém se demora!"
(Pouso de carretas)
No poema "Querência – tempo e ausência" o poeta extravasa a saudade da sua infância, a mais perfeita representação do Paraíso Terrestre: ausência de responsabilidades – (antes de cometer o Pecado Original o homem não dispunha do livre-arbítrio. E sem o livre-arbítrio não existe crime, nem pecado e muito menos castigo) – protegido por um Pai Todo Poderoso, num local onde não existia competição, nem fome, nem frio, nem suor e nem morte.
"No cartão de procedência,
pouco importa onde nasci,
busquei rumo e me perdi,
querência – minha querência,
desde então me chamo ausência,
porque me apartei de ti!"
Para o gaúcho, o seu torrão natal eqüivale à mãe para o italiano. Depois de adulto, desmamado, ainda vive suspirando por ela. Saudade da infância é saudade do paraíso, de onde, um dia, todos fomos expulsos...
Quem poderia escrever melhor? Provavelmente, a passagem da meia-idade para a velhice lhe deve ter sido muito penosa. Como conformar-se com as perdas? Só se conforma com suas perdas aquele que não perde nada... porque nada tem a perder. A velhice do medíocre costuma ser tranqüila, fria e parada como a água escura de um poço. Que sirva, ao menos para refletir a lua e as estrelas! O máximo que pode fazer o medíocre é reverenciar os homens de talento, batendo palmas.
Provavelmente, o pavor do esquecimento eterno é que fez o poeta escrever tão bonito. Aliás, isso parecer ser o motivo que leva à maioria dos escritores a escrever: pôr a assinatura num quinquilionésimo de segundo da eternidade. É a necessidade de não ser esquecido, porque ser esquecido é morrer.
No poema "Cruz do pago" Caetano patenteia este medo:
"........................................
Velha cruz, mudo lamento
De quem perdeu a esperança
E apagou-se na lembrança,
Nas trevas do esquecimento!"
"Apagar-se da lembrança nas trevas do esquecimento"
"Apagar-se da lembrança nas trevas do esquecimento" é muito mais que morrer. É eliminar, para sempre, qualquer rastro de passagem neste mundo, como se nunca tivesse existido. É carta de amor achada no fundo de um baú, letras semi-apagadas, papel amarelado pelo tempo... Quantas juras e promessas que fizeram disparar corações, correr lágrimas de saudade, agora no esquecimento! O tempo é um carrasco sem coração que acaba com ardores juvenis, sonhos e romantismos. Acaba até com os amores que pareciam eternos.
Pura poesia nativista.
"..........................................
e hoje seus versos são gemas
que formam constelações."
O primeiro poema do livro "Paisagens Perdidas" contém os versos mais lindos de toda a poesia de Caetano Braun. Em versos perfeitos expressa sentimentos que emocionam qualquer um: melancolia do entardecer, quando as sombras vespertinas anunciam a noite do fim.
Paisagens de campo e alma
perdidas no vem e vai,
soluços do Uruguai
que bebe lua e se acalma;
a noite passa à mão salva,
com ela vem a saudade,
olfateando a claridade
das brasas da estrela d’alva!
Nascem rugas no semblante,
paisagens da natureza
que a força da correnteza
não pode levar por diante;
então exigem que eu cante,
quando me encontro desperto,
mas sempre que chego perto
meu sonho está mais distante!
Paisagens de sombra e luz,
como é que pude perdê-las?
Ficaram as "cinco estrelas"
fazendo o "Sinal da Cruz"!
Sol posto, num funeral de sangue. A paisagem se cobre com as sombras do luto. Tudo silencia. Depois da estrela boieira, as primeiras estrelas que aparecem são as do Cruzeiro Do Sul. A noite acena com mistérios de trevas... e, de medo, faz o Sinal da Cruz.
"... Se não me falha a memória / eu conheci este cantor..."
Conheci Caetano Braun em 1975. Foi quando ele veio a Caxias do Sul, acompanhado do Noel Guarani e do Flávio Alcaraz Gomes, atendendo um convite para uma janta oferecida pela Metalúrgica Abramo Eberle S/A. Era uma homenagem que a firma fazia ao poeta responsável por um programa na Rádio Farroupilha, nos sábados de manhã, cedinho. Nele, Caetano ficava durante uma hora inteira improvisando o que lia no jornal do dia – "Zero Hora" – ainda quente do prelo. Sucesso estrondoso! Como eu era médico da firma, também fui convidado.
Depois da janta houve discursos, agradecimentos, elogios. Eu, com vários copos de "borgonha" na cuca, resolvi declamar um poema do Caetano. No meio da declamação, falhou a memória! Com uma presença de espírito incomum para mim – sempre me vem à mente as mais espirituosas resposta depois de passado o incidente – apelei para o autor, que estava sentado ao meu lado: "Esqueci, mas não importa! Ninguém melhor que o autor para continuar o poema!"
O Caetano levantou-se com calma – não precisou pedir silêncio porque quando ele se levantava, todo o mundo ficava calado – fitou a platéia por alguns segundos, depois disse:
– "Eu também me esqueci!"
Todos caíram na risada. Foi uma gentileza sua. Era evidente que ele não havia esquecido. Logo, começou a declamar versos perfeitos, improvisando para cada um dos presentes conforme sua profissão, atividade, sem jamais apelar para humilhações ou vulgaridades.
Terminado o jantar, um dos diretores da firma, também admirador do poeta, fez questão que todos fossem à sua residência tomar licores e fumar cigarros americanos e charutos cubanos. Caetano e Guarani, meio xucros de cerimônias e cansados da viagem, não queriam ir. Mas, como não havia como escapar, foram. Meio a contragosto, mas foram.
Durante o serão, sala rica – chão recoberto por finíssimos tapetes, paredes decoradas com quadros caríssimos – uma senhora, esposa de outro diretor, já falecido, começou a elogiar os sapatos ingleses. "Porque o couro é especial, que aqui ninguém consegue fazer igual..." etc. e tal. Aí, Caetano não se conteve. Levantou-se da poltrona e disse em voz alta para que todos ouvissem: "Não admito que desprezem, na minha frente, os produtos da minha terra em favor de um país explorador e escravagista como a Inca-la-perra". Sem despedir-se, foi-se embora, acompanhado pelo Noel Guarani.
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Carta enviada ao Jayme Caetano Braun em sete de outubro de 1992:
"Estimado Caetano Braun:
A tardinha traz sentimentos de nostalgia. Talvez porque significa a morte do dia, de mais um dia da nossa vida de teatino neste mundão velho de Deus, que já está ficando pequeno. Há cada vez mais porteiras e menos espaço neste "formigueiro grande, / Onde costumes malditos / Tentam matar aos pouquitos / As tradições do Rio Grande!"
Por conta do entardecer, quando "a tarde recolhe o manto", hoje a depressão pousou de vagar, como cerração fechada de inverno, amortalhando paisagens. Parece garça pousando na beira da lagoa parada, sobre uma só perna, apoiada, aguardando o entardecer. O mundo silencia em respeito à noite que vem, carregada de mistérios. Não há sinos tocando "Ângelus", nem sabiás floreando últimos cantos no alto de corticeiras...
Mas a tristeza foi logo embora ao ouvir, na rádio local, a voz do amigo declamando "Galpão Nativo". Como é bonito! Rima e métrica casadas com o sentimento, tudo perfeito como jóia irretocável, brotando da alma ao natural, como vertente de manancial fluindo fresca e cristalina de dentro do capão de mato nativo. E como água boa, foi refrescando a alma cansada, lavando as feridas doridas, dando ânimo, otimismo e alegria de viver.
Depois de morto o Caetano Braun, não faltarão "miles" de vozes deste Brasil imenso, preiteando tão grande poeta, chorando tão grande perda. Mas, eu quero em vida enaltecer a sua arte, indissociável da sua essência, pois Caetano e Poesia são a mesma coisa.
Estou certo, amigo Braun, que não tens nem um segundo de descanso. Dia e noite, noite e dia, deve haver um demônio dentro da tua cabeça martelando rimas, medindo versos, recolhendo – como quem recolhe cavalhada xucra esparramada pelos fundos perdidos de campos, pelos brejais imensos – a beleza que há na alma gaúcha e na vida singela vivida dentro dos galpões de estâncias deste Rio Grande imenso. E que te obriga a ir embrulhando tudo em versos limpos, que ficarão eternamente vivos nas páginas dos teus livros. Assim, serás sempre lembrado. Serás sempre lembrado enquanto houver botas, esporas, galpões, fogões, galos de rinhas, potros, ponchos, panelas de ferro. Enquanto houver admiração à arte da "payada" carregada de sentido e sentimento e, principalmente, enquanto houver respeito às tradições e um amor imensurável à terra em que se nasceu.
Ao ouvir-te, me veio à mente as palavras do teu amigo Aureliano:
".............................................
– Se não me falha a memória
eu conheci este cantor..."

Fonte: Capítulo do livro Flore da Corticeira, de Eduardo Festugato

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